Veddas

Os verdadeiros argumentos abolicionistas contrários à vivissecção

Sônia T. Felipe

Os defensores dos animais, favoráveis à abolição do uso do modelo animal para pesquisa da cura das doenças humanas, ao contrário do que afirma André Petry, não são “obscurantistas zoofílicos” que querem fazer parar toda pesquisa científica na área da saúde e medicina humana. André Petry parece bastante “cego e obscurecido” por sua própria visão egocêntrica, e possivelmente ainda não teve tempo de ler nada do que já foi publicado nos últimos 30 anos sobre a necessidade de mudar do paradigma vivisseccionista para outro mais de acordo com os avanços tecnológicos e científicos da humanidade esclarecida. Quais são os argumentos que sustentam a posição nada “obscurecida nem medieval”, dos abolicionistas?

O primeiro deles, é que a saúde humana é a saúde de uma espécie viva, cuja biologia, fisiologia e psicologia em muito se assemelha a muitas outras espécies vivas que habitam o planeta terra. É verdade. Em nome disto, os abolicionistas sustentam que não se pode justificar eticamente o uso de animais vivos em experimentos dolorosos e letais, porque nenhuma vida senciente é substituível por outra, nem da própria espécie, nem de qualquer outra espécie. Estar vivo é a única e grandiosa maravilha para cada um dos seres vivos sencientes. Tirar a vida de centenas de milhões de seres sencientes para testar drogas inventadas para lidar apenas com os sintomas das doenças produzidas na espécie humana, justificando-se que afinal as vidas destruídas não têm valor inerente algum para os seres dizimados, que seu valor só existe em relação ao que os humanos podem fazer aproveitando-se de sua vulnerabilidade, não é argumento ético. Tal tese não se sustenta eticamente, porque não poderia ser usada validamente para justificar o uso de seres humanos em condições vulneráveis em experimentos semelhantes.

O segundo argumento dos defensores dos animais (erroneamente denominados por André Petry de ”zoofílicos”, o certo seria dizer zoófilos, do grego zoo = animal, e philia = amor), não se baseia na hipótese “de parar a ciência em nome da bicharada”, ou seja, da interrupção de toda e qualquer pesquisa científica, mas da abolição de toda e qualquer pesquisa que quer ser considerada científica mas continua a fazer uso de animais vivos como modelo para testes de produtos químicos e drogas que se multiplicam não apenas desnecessariamente ao redor do planeta, sempre prometendo a cura dos males humanos que nunca chegam a ser curados, mas letalmente, por induzirem a própria comunidade científica a crer que, por serem semelhantes os organismos de animais não-humanos e de humanos, do ponto de vista da estrutura fisiológica e em muitos casos neurológica e mental, também do ponto de vista da estrutura molecular esta semelhança se repita.

Não é verdade que da perspectiva metabólica sejam iguais dois organismos vivos quaisquer. Se um organismo é dotado de um sistema nervoso central organizado, se produz hormônios, se tem consciência dos eventos que o afetam positiva ou negativamente, isto é, se tem emoções, este organismo assemelha-se, mas de modo algum é igual a um outro organismo com as mesmas características. Não apenas o sexo, a idade, a espécie, a linhagem, o estatuto no grupo social são características que alteram significativamente as percepções de um indivíduo senciente (não importa aqui se este indivíduo é um rato, um suíno, um eqüino ou um humano), mas, para além dessas variáveis um milhão ou milhões de outras traçam uma rede impossível de ser escaneada em cada indivíduo animal usado como modelo ou cobaia para testes da indústria farmacêutica e química. Cada indivíduo produz uma química própria, semelhante à dos pares da mesma espécie, mas infinitamente singular. Não há dois processos metabólicos exatamente iguais, embora padrões semelhantes se façam reconhecer em indivíduos da mesma idade, sexo e linhagem.

Nos milhões de outros interferentes devemos levar em conta, desde o tipo de parceiros confinados no mesmo grupo prestes a servir de cobaia, até os sons ou ruídos produzidos ou subtraídos do ambiente no qual os animais ficam engaiolados enquanto são usados para os experimentos. O olfato de humanos não consegue perceber os odores que impregnam uma sala de experimentação, desde o cheiro do shampoo usado pela estudante, até seu desodorante, esmalte de unhas, maquiagem, tecidos de suas roupas, sapatos, e outros odores de seu corpo. Multiplique-se isto por 10 ou 20 pessoas que entram e saem do laboratório todos os dias, o que comeram dois dias antes, ou agora mesmo na lanchonete... se lavaram as mãos, ou não, após pagar o lanche e tocar no dinheiro fedido... ah! ainda tem o fedor de suas carteiras, suadas e manuseadas há anos, de seus bolsos, nos quais botam e tiram as mãos dezenas de vezes por dia... e o cheiro de suas bolsas, de seu material científico, da tinta na qual o artigo acabou de ser impresso... dos produtos usados para a desinfecção do ambiente, isto, quando tal preocupação existe... o cheiro das gaiolas, do piso, das paredes, dos químicos usados para tornar potável a água que sai da torneira, o cheiro do capacho no qual todos limpam os pés ... se é que o fazem, antes de entrar no laboratório, e os cheiros que entram por debaixo das portas, nos dias de vento, de chuva, de poeira e calor... e o cheiro da roupa nova que três ou quatro estão usando... o cheiro do sexo que acabaram de fazer antes de virem para o trabalho vivisseccionista, e o cheiro de seus hálitos infectos com fumo, álcool, frituras, refrigerantes e partes dos cadáveres que acabaram de ingerir na última refeição... São muitos cheiros a perturbarem o olfato dos camundongos e ratos, dos gatos e cães engaiolados como se fossem sapatos aos pares em caixinhas nas quais mal se podem mover. Cada cheiro desses desencadeia em seus organismos reações metabólicas mil, sobre as quais o pesquisador não tem o menor controle. Por isso, não existe o tal do “controle das variáveis”. Por isso, o que o pesquisador pensa que garante controle de variáveis em sua investigação é apenas aparente, é muito pouco ou mesmo nada, quando se trata de seres que têm 300 milhões de células olfativas a mais do que as nossas próprias.

O vivisseccionista tem a soberba de dizer ao público que sua pesquisa é científica, porque todas as variáveis estão sob seu controle experimental. Mentira. Não estão. E vejam, só me referi até aqui a um tipo de estímulo que altera completamente a fisiologia do animal senciente super-olfativado. Não falei dos sons. Mas os há em quantidade tão variável e “sem qualquer controle”, num laboratório de vivissecção, que levam o organismo dos animais a produzirem químicas singulares, em reação ao que ouvem sem poderem decodificar: o som da água que passa por dentro das paredes, nos canos embutidos. Sons que o vivisseccionista não ouve, mesmo tendo um ouvido “superior” ao de sua cobaia. E tem ainda o som da eletricidade, que também passa pelos canos embutidos nas paredes. Também estes sons horríveis e estressantes o vivisseccionista não ouve, mesmo tendo uma superioridade biológica sobre todas as demais espécies. Mas, no laboratório vivisseccionista, somente os pesquisadores são surdos, e não apenas a estes ruídos insuportáveis que só são percebidos por ouvidos muito sensíveis, os mesmos ouvidos atormentados 24 horas por dia com esses e outros ruídos ensurdecedores que não existem no ambiente natural dos animais usados na vivissecção. E tem ainda o ruído dos computadores ligados, do ar condicionado, da impressora e dos teclados, os sons metálicos dos objetos manipulados no experimento, o som dos que caem no chão ou sobre as bases metálicas. Tem o som das vozes dos 10 ou 20 vivisseccionistas que entram e saem do laboratório conversando, rindo, chorando, gargalhando... e o de seus aparelhinhos enfiados nos ouvidos com MP3, e o de seus celulares, bips, e Ipods.... e o som dos carros lá fora, de buzinas, das trovoadas, e os sons do andar superior, do inferior, de gavetas que são abertas e fechadas, de armários metálicos abertos e fechados, de portas metálicas ou não, de chaves passadas na fechadura, de trincos de portas manuseados, de fechos de bolsas e sacolas abertas e fechadas, de equipamentos sendo ligados ou desligados.

E há, ainda, a variação da temperatura, da umidade do ar, da quantidade de químicos que a companhia de águas acaba de botar para “tratar” da água depois daquela denúncia de que a água estava sendo servida contaminada... e o insuportável odor da comida servida, sempre da mesma marca e com nutrientes que apenas para o vivisseccionista são necessários, não para o bem-estar do animal senciente. E tem o toque do manejador, e já não preciso descrever o que fazem ao animal em seguida.

Fiz apenas uma lista ínfima das variáveis que interferem no metabolismo de um animal senciente, e que levam os resultados a níveis enganadores. Esta lista não chega a 1% de tudo o que um animal usado como modelo vivo percebe. Qual o controle que o vivisseccionista tem sobre tais variáveis e outras? Mesmo que todos os animais sencientes sejam de uma mesma linhagem, de uma mesma idade, de um mesmo sexo, a intensidade de suas percepções, a exemplo do que ocorre com os humanos, varia de indivíduo para indivíduo, e mesmo num indivíduo de uma hora para outra, ou de um dia para outro.

Um terceiro argumento que leva os abolicionistas a se oporem ao uso de animais vivos na ciência, é justamente o da perda de tempo que tal modelo tem representado para o avanço científico, se é que a ciência quer mesmo encontrar a cura dos males humanos e não apenas drogas para serem consumidas e renderem lucros à indústria farmacêutica, aliás, uma das mais poderosas ao redor do planeta.

A maior parte das doenças humanas são produzidas por hábitos que somente os humanos têm. Os abolicionistas não pregam o fim da pesquisa genuinamente científica sobre a saúde humana. Eles defendem o fim do uso de animais não-humanos como objeto destas pesquisas. Quando, afinal, os cientistas acordarão para o fato de que só se pode conhecer a etiologia das doenças humanas estudando a clínica humana? O que os abolicionistas querem é que todo o dinheiro investido hoje ao redor do planeta em modelo animal seja investido em pesquisas realmente científicas voltadas ao estudo da etiologia da doença humana. Não precisa usar humanos como cobaias em experimentos bárbaros.

Mais de 50 anos de testes de drogas em animais e em humanos são suficientes para se ter dados sobre as reações a todas as drogas comercializadas no mundo desde a década de 60 do século XX. Basta formar um banco de dados com todos os resultados obtidos até hoje, com todos os relatos médicos obtidos com o uso dessas milhões de drogas inventadas e usadas em cobaias humanas ao redor do planeta sem que essas cobaias tenham sequer noção de que, o que seus médicos acabam de lhes anunciar como a droga mais recente para a cura de suas doenças, é na verdade um experimento que lhes pode ser inócuo, ou mortal.

Os abolicionistas não são obscurantistas medievais [se é que a Idade Média foi obscurantista, embora os médicos dos reis o fossem, ao abrirem sapos, pombos e cães para examinar suas vísceras e dar resposta aos soberanos sobre a cura ou não de suas doenças. Os abolicionistas não defendem esta prática medieval, pelo contrário, defendem o fim dela!]. Pelo contrário. São seres humanos cientes do desperdício da inteligência humana, que hoje é treinada apenas para prescrever drogas legais tendo na parede de sua sala de trabalho um diploma da medicina. O que está sendo feito com a inteligência dos jovens que entram num curso de medicina com o intuito de ajudarem os seres humanos a eliminarem seus males e a curarem suas doenças? Prescrevendo drogas, ainda que legais, os jovens médicos apenas estão matando o rim, o fígado, o estômago, a bexiga, o sangue de muitos de seus pacientes, efeito do uso de medicamentos testados largamente em animais.

Um quarto argumento abolicionista refere-se às doenças mais letais e crônicas que afetam a espécie humana: cardiovasculares, pulmonares, do trato digestivo e urinário, psíquicas, dores nas costas, câncer, degenerações neurológicas... curáveis com a abstenção, por alguns meses, de todos os produtos de origem animal [leia, Foods that Fight Pain e The Food Revolution].

Mas, milhões de camundongos e ratos são mortos todos os anos para que uma droga seja inventada para curar os humanos de triglicerídios, hipercolesterolemia, falta de cálcio, excesso de ácido úrico, hipertensão, diabetes, e assim por diante. Vivisseccionistas querem por que querem fazer os que sofrem dessas doenças crerem que logo, logo, uma droga será comercializada para livrá-los dos males que eles mesmos inventam com sua dieta errada.

Mas, se o médico não prescrever nenhuma droga, se olhar para seu paciente e disser: por dois meses quero que “teste” em você mesmo a seguinte dieta sem leite, ovos, manteiga, iogurte, carne, peixe, frango ou quaisquer de seus derivados... este médico será demitido da clínica. Afinal, para que lhe foi concedido um diploma, se não é para prescrever aos pacientes as drogas legais colocadas no mercado?

A Organização Mundial da Saúde tem tornado públicos os relatórios médicos que alertam para a necessidade de redesenhar a dieta humana [leia The Food Revolution, e Diet for a New America, de John Robbins]. Mas, os cientistas querem que milhões de animais morram em suas mãos até que eles tenham conseguido inventar drogas para que os humanos não precisem abrir mão de nada que costumam comer, por mais tóxico que isso seja para seus organismos.

De qualquer modo, ainda que se descobrisse uma droga para curar o alto nível de colesterol, o uso desta droga certamente desencadearia outros males. Estes, outra vez, requereriam a vivissecção, para que o cientista pudesse encontrar uma nova droga para livrar os pacientes que houvessem usado a anterior dos males que ela produz. A cadeia vai se expandindo ao infinito. É exatamente neste ponto que já nos encontramos. O que os vivisseccionistas não querem perceber é que esta trama não apenas não os levará ao sucesso, mas é responsável pelo seu fracasso.

A maior parte dos males dos quais padecem os humanos, hoje, ou já existia há mais de 5 séculos, ou há mais de 2 mil anos, ou resultou do uso de produtos químicos testados em animais e colocados em alimentos, bebidas e medicamentos.

Os animais não têm culpa alguma de nossas escolhas. Eles não beneficiam das nossas vantagens. Eles não têm de responder às perguntas que os cientistas deveriam estar buscando responder com a matemática, com simulações em computador, com raciocínio sobre os dados já disponíveis ao estudioso.

Os abolicionistas, ao defenderem a libertação dos animais de sua condição de escravização, defendem a libertação dos cientistas dessa malha que os ata e os desatina. Não achamos que os vivissectores são maldosos e cruéis. Achamos apenas que são homens e mulheres “infelizes”, no sentido aristotélico do termo, quer dizer, são seres racionais, que sabem o que se espera deles, por sua “excelência”, mas estão se condenando a fazer exatamente o contrário do que se espera que façam. Este é o conceito de infelicidade na ética aristotélica: saber o que é esperado fazer, e fazer o que leva ao contrário do resultado esperado.

A libertação animal é a libertação humana, a libertação da mente e da inteligência humana, para que possa finalmente prestar-se à finalidade mais refinada para a qual deveria ter sido aprimorada: buscar o saber, sem tirar a vida de seres vulneráveis. Esta é a inteligência que esperamos ver florescer na ciência biomédica. Mas os obscurantistas vivisseccionistas não querem tornar-se inteligentes desse outro modo, pois aprenderam a obscurecer sua inteligência revolvendo as vísceras de animais vulneráveis, em vez de aprimorarem-na, criando modelos matemáticos e computadorizados e métodos de investigação não-invasivos em humanos, afinal, os destinatários finais de tanto empenho, ou não?

E, finalmente, não é por ser aceita e defendida por “toda a comunidade” vivisseccionista, que a prática vivisseccionista se torna, então, ética. Se André Petry não for obscurecido por seu furor contra os abolicionistas, deve lembrar-se de que a história humana arquiva episódios de aceitação das maiores barbáries por uma maioria, ainda que uma minoria antecipasse a crítica ética a tais costumes ou tradições. Foi assim, no império romano, com as lutas forçadas entre os gladiadores e animais; foi assim com a escravização dos africanos, contra a qual ninguém ousava levantar a voz, e quem o fez, no Brasil, foi condenado à forca; foi assim, com o império nacional-socialista europeu no século XX, não apenas com um país inteiro formando a maioria apoiadora, incluindo-se a “comunidade dos médicos e cientistas” favorável a tais práticas; foi assim com a exclusão das mulheres, a inquisição, a ditadura e o consumo que levará nosso planeta à morte. A verdade não necessariamente se encontra do lado do mais forte, apenas a força está lá. Quem desafia a tradição moral dominante é tachado de obscurantista. Apenas não se disse claramente que tipo de luz ilumina a vivissecção. A “cura das doenças” humanas, infelizmente, não é. Os abolicionistas não são iluminados por esta luz, eles o são, por outra: paz para todos os animais viverem o seu próprio bem, a seu próprio modo, sem prisões, sem grilhões, sem tormentos. Basta estar vivo para sofrer maus momentos. Não precisa nenhuma inflição de novos tormentos.

[Enviado à Pensata Animal para edição no volume de novembro 2007]

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Sônia T. Felipe, doutora em Filosofia Moral e Teoria Política pela Universidade de Konstanz, Alemanha, membro do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, FLAD; pós-doutorado em bioética com recorte em ética animal, Professora e pesquisadora da UFSC, orienta monografias, dissertações e teses em bioética, ética animal, ética ambiental, direitos humanos e teorias da justiça. Autora de, Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2007) e Por uma questão de princípios (Boiteux, 2003). Colaboradora da Revista Pensata Animal, www.sentiens.net.

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