Veddas

Pelo Progresso da Ciência

Maria de Nazareth Agra Hassen


Como progride a ciência? O grande teórico da filosofia da ciência, Thomas Kuhn, no clássico A Estrutura das Revoluções Científicas, sustenta que a ela avança aos saltos, isto é, não progride por cumulatividade. Ele reconhece dois tipos de ciência: a ciência normal e a extraordinária.

Kuhn investiga o conceito de paradigma, uma visão de mundo que orienta e estrutura as investigações científicas. O paradigma inclui tudo: as leis, a teoria dominante, os princípios filosóficos de que ela se cerca, as concepções metodológicas e procedimentos padronizados.

A ciência normal é ciência do dia-a-dia, do cientista que, mergulhado no seu paradigma, descarta tudo o que seus conceitos não conseguem resolver. Assim, anomalias e novidades que surgem no seu caminho experimental são eliminadas visando não comprometer os fundamentos do modelo de ciência na qual este cientista está inserido. Enfim, a comunidade científica “pesquisa” sob os ditames do seu paradigma. Ela visa enquadrar nele todos os fenômenos com que se depara. Aqueles que ela não consegue enquadrar, ela desconsidera e segue no seu modus operandi cotidiano e repetitivo.

Contudo, a acumulação de anomalias, isto é, de casos problemáticos que o paradigma não resolve, acaba por dar origem a períodos de crise. As "anomalias", ao ameaçarem o paradigma nos seus próprios fundamentos, são momentos críticos porque o consenso dá lugar à divisão, à formação de grupos que procuram outras teorias e outros fundamentos. A este período crítico, Kuhn dá o nome de ciência extraordinária.



A mudança de um paradigma é uma revolução, e a ciência só progride por revoluções paradigmáticas, isto é, sinteticamente: a ciência só progride quando as anomalias se fazem notar, quando elas sacodem o cientista normal da sua tarefa monótona e fechada dentro dos procedimentos do paradigma. Assim, da crise, surgirá uma idéia, uma teoria que revolucionará a ciência, que instaurará por fim, um novo.



A relação com o caso da Objeção de Consciência pretendida por Róber Bachinski é evidente. Róber fez exteriorizar-se a anomalia, isto é, ele representa a legião de estudantes que se desencantam com os cursos com que sonharam e com os quais pensavam valorizar a vida. Róber é um e é muitos. Basta ver a quantidade de pessoas que vêm deixando seus depoimentos nos sites que publicaram a notícia de sua vitória na liminar que lhe garantiu o direito de não matar para estudar. Estudantes que dizem ter desistido de cursar Veterinária porque buscavam salvar vidas e aprendiam como fazer lingüiça. Queriam salvar animais e aprendiam a transformar animais em comida humana com controle sanitário.



Claro que estamos aqui no campo do ensino e não da ciência propriamente dita. Entretanto o ensino acontece dentro do paradigma dominante, e os professores são os cientistas normais por excelência.



Todo mundo já teve a experiência de um professor ousado, criativo, contestador. Mas a maior parte de nós conhece muitos professores acomodados, repetidores semestre a semestre das mesmas aulas, mesmas metodologias, até mesmas piadas quando temos a sorte de conhecer um bem humorado. Assim como também conhecemos colegas que querem a repetição, que querem que o mundo siga sendo como sempre foi, porque é mais cômodo e porque acham ótimo estudar na mesma cartilha dos pais e dos avós.



Pois os pais e avós do ensino estão no dia de hoje muito incomodados. E seus discípulos, alguns deles, também. Dá para ver nos mesmos sites antes referidos o nível desses colegas ao manifestarem seu descontentamento com a decisão judicial. Desviam o foco da ação para o autor da ação, tentam desmerecê-lo, o ofendem. O incrível é que essa decisão não os afeta, ela tão somente garante o direito do aluno postulante de não participar de experiências que ferem seus princípios de reconhecimento dos direitos animais.



Róber é a anomalia da ciência normal. Mas vejam bem, anomalia no sentido kuhniano, isto é, ele mostra que o paradigma vigente não está dando conta de um dilema ético que vem se impondo. E esse dilema ético começa a ser representativo de muitos. A Justiça o reconhece. A Justiça encontra artigos em Códigos que apóiam a objeção de consciência, isto é, o direito de um estudante postular substituição a mortes de animais em aulas práticas. A sociedade, por meio de centenas de ongs, se mobiliza para defender esse direito. Enfim, a crise está instaurada. Para os que não conseguem entender a crise como propulsora do progresso da ciência, o momento é grave, é de luto. Para os que concebem a crise como a emergência de desafios crescentes que levarão ao salto da ciência, é momento de celebração.



Assim como a ciência normal tenta enquadrar dentro do paradigma os fenômenos com que se depara, também a Universidade (onde tanto se estuda Thomas Kuhn e onde se teoriza sobre aspectos da vida moral como pluralidade, alteridade, diversidade) tenta enquadrar Róber no modelo da dessensibilização, que é como se chama a faculdade de não ligar para o sofrimento alheio em nome da ciência.



É hora do velho paradigma dar lugar ao novo, a um novo modelo de ciência que dê conta das objeções éticas que, felizmente no que diz respeito aos direitos animais, se apresentam na entrada do século XXI. Pelo menos até a crise seguinte...


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Maria de Nazareth Agra Hassen é filósofa, antropóloga e doutora em Educação. Participa do GAE-POA, Grupo pela Abolição do Especismo Porto Alegre. E-mail: naza@portoweb.com.br


Texto já publicado no site do Grupo pela Abolição do Especismo de Porto Alegre - GAE - http://www.gaepoa.org/

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